O moedor ideal e os relacionamentos

Samantha Buglione
4 min readJul 28, 2021
imagem internet

Eu gosto de café. Quem me conhece confirma. E gosto ao ponto de me preocupar se o moedor é de cerâmica ou não, e tem que ser manual para não queimar o grão. Não me julgue. E gosto de catuai amarelo para todos os dias e um catuaí vermelho para quanto a vida pede algo mais forte. E gosto da prensa francesa mais que da moca italiana. E um passado em V60 também curto, mas não diariamente. Do café gosto tanto da ritualistica quanto do gosto. Os frutados, amedeirados, achocolatados… aquele café nada ácido se desmanchando em sabor geralmente vem acompanhado de boas companhias. E sem açúcar, óbvio. O doce deve estar em outro lugar.

Mas sabemos que café bom pode ser caro. Ai, finalmente, encontrei um produtor em Minas e dele encomendo quilos e quilos de um café excelente bem brasileiro, tudo em grão. Na verdade café bom não é tão caro assim, mas exige, como todo desejo, uma atenção, um percurso.

Eis que desse encontro criei um problema: o moedor ideal. Lá se vão 4 meses da casa cheirando a café. Desde lá circulo entre moedores emprestados porque não consigo simplesmente comprar um. Sim, não consigo escolher. Sou consumida pela ansiedade do risco em comprar um moedor não digno do meu café maravilhoso. Tenho o café, tenho mil opções de moedores mas estou paralisada. O resultado é que circulo entre os emprestados, ora o manual de um vizinho, ora o elétrico de outro (Sim, elétrico. Não me julgue, estou sofrendo). É como se ao pegar emprestado o moedor eu não maculasse em ato o meu amado café. Não posso dar a ele qualquer moedor. O ritual perfeito exige o moedor perfeito para o café perfeito.

E nessa busca pelo ideal criado na minha mente, ou herdado de alguém, eu fico refém da boa vontade alheia que passa a ser a parte ativa do meu desejo. O café esta diante de mim, mas eu não cedo ao meu desejo porque não quero abrir mão desse algo que me opera, desse ideal, o moedor no caso.

Esse drama todo me parece uma metafora perfeita para o que chamamos hoje de relacionamentos. Habitamos -agora- a bolha do algoritmo com seus aplausos (leia-se likes) e ali, protegidos, quase como uma planta de estufa, não encontramos uma falta que nos rale os joelhos ou um desejo que nos faça andar quarteirões ou atravessar mares ou enfrentar a morte do moedor perfeito (que só existe num delírio imaginativo). Porém, esse delirio afeta o cotidiano. Envolve pessoas, influencia o humor. Nessa perspectiva esse delirio é real. Ele é praticamente fruto de uma relação narcisica minha com o meu passado (ideias são sempre um passado). Mas ele nasce na minha mente, é uma ideia, e não resultado de um processo relacional com o mundo. Eu me torno passiva diante do ideal de moedor e de ritual de café que praticamente passa a me pensar; e passiva na realização do meu desejo que passa a depender da boa vontade de terceiros: os donos do moedor. Me coloco, sem perceber, numa condição de refém. O mais difícil já consegui: o café. Tem moedor quase em todas as esquinas. Então não é algo da natureza da realidade a dificuldade de ter um.

Essa ideia perfeita torna-se impeditiva de me relacionar com o mundo porque me captura. A relação que surge com o mundo, a partir do meu moedor ideial, é um sintoma.

Ali mais em cima falei em ralar, andar e enfrentar. Viver é verbo ação, um fazer no mundo, criar. Criar é praticamente o resultado de uma dialetica entre o que sou com o que me inspira. Heiddeger usa o termo Dasein "o ser aí", somos esse "ser aí que é verbo". Por certo ideias são uma forma de ação, mas veja, minha provocação é a seguinte, se estou dentro da bolha do algortimo (ou dos grupos de parecença de amizades) minhas ideias apenas se retroalimentarão, alcançarão uma erudição talvez, um rebuscamento, ou pior, súditos. E nessa crença de ser bom porque há muitos que me ouvem eu não me movimento, simplesmente porque não preciso. Não há falta, sempre haverá um elogio, uma escuta. Mesmo que o que eu esteja falando seja sobre um moedor de café absurdo.

O corpo é a porta de entrada para o novo. A mente só pensa o que já existe em si. Dali não se cria. Quem cria, por exemplo, é a barriga, é o inconsciente. A mente, não, ela faz sinapses e conclusães com o que tem a disposição. É como se ela mesma fosse uma página do insta regida por um algorítimo. O que faz algo novo acontecer é o ralar os joelhos porque aqui temos uma queda, uma mudança não planejada de direção. E doi. Doi mesmo. Doi perder o planejamento e dói os joelhos.

Temos que ser sinceros porque em certa medida sempre habitamos uma bolha de parecença. Mas o incremento de complexidade do nosso tempo é a impermeabilidade da bolha de hoje e a ausência de espaço, de vazio. Não há o momento do tédio, da frustração, da solidão. É possível ser alimentado 24h por um elogio e ali ficar indeterminadamente e preso.

O perigo é que essa plantinha de estufa, diante de um desejo que a movimente, talvez não de conta. A frustração, a dor, o medo, podem raptá-la ao ponto de matá-la no primeiro contato com um mundo que não é perfeito em condições, muito menos em temperatura e pressão. Não é perfeito e é divertido exatamente por isso. A estufa é controlada, segura. O munda das ideias perfeitas também é. Mas ali o corpo não existe e pouco se diverte, não dói, não expande, não encontra o novo. E isso cria outro fenômeno: a massa de jovens conservadores que querem controlar inclusive seus desejos mais originais. Que entendem como pecado o sexo e como prazer passar fome.

A consequencia disso é que ninguem vai tomar café.

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Samantha Buglione

Doctor in human sciences, philosopher who uses the scientific method of Goethe and poetry