DIÁRIO de uma viagem auspiciosa: antes do começo

Samantha Buglione
8 min readNov 18, 2019
Ratones, Dezembro de 2016

Abissal me chamaram esses dias. O velho amigo disse que era um elogio, mas aquilo me incomodou. Pessoas abissais vivem a beira do infinito, de precipicios profundos e a ralar os joelhos em eternas tentativas por equilíbrio. Eu queria um pouco de base, de porto seguro e não essa coisa de sonhar com veleiro e viver acertando o leme, mas somos o que somos. Aceitei o abissal porque era o máximo que o amigo poderia me dar e tento aprender a não exigir mais das pessoas do que elas estão dispostas a oferecer. Não que isso evite que me encha de cólera em dias vulneráveis e solitários. Nesses dias acho que o mundo me deve, principalmente os amigos que encerram conversas com a polidez de um “conte comigo”. Pessoas abissais levam isso a sério e sofrem.

Dado este pequeno prólogo que tem como função não introduzir a história, mas a cena por detrás, ou o nível de insanidade ou simplesmente a normalidade romântica, este diário de bordo refere-se a uma viagem que (em tese) começa com um incêndio.

Ratones, algum dia entre 2013 e 2016

Tudo ia bem: casa feita e em constante reforma, afinal sempre dá para mudar a cor da parede ou fazer um puxadinho para alguma ferramenta (des)necessária, carro vintage reformado e funcionado, dois filhos, gralhas azuis voando ao amanhecer, galinhas selvagens e domésticas, sapos e rio, Tatayo, Mikodi e Nzeho (nossos gatinhos) e uma linda Border chamada Chiquinha. A perfeita cena bucólica de uma familia em harmonia com a natureza. Só não tinha a horta perfeita porque as galinhas, que viviam soltas, comiam todas as sementas biodinâmicas plantadas.

Tinha a Isabela também. Isabela é uma égua que por sorte da nossa ignorância achavamos que daria para acomodar em um terreno pirambeira de 2.600m2: não dava. Hoje Isabela mora em Anitápolis com espaço sobrando, graças ao incêndio!

Foto: Naiara Conservani, Isabela e Jig em Anitapolis, 2019

Então, era uma vez, em uma madrugada de vento, em tempos de advento, uma casinha do rio que pegou fogo. Tudo queimou.

Mais de mil livros, quadros, obras de arte, o rádio que foi de um avô, instrumentos musicais, máscaras africanas, uma harpa Ngombi original dos pigmeus do Gabão, álbuns de fotos, quadros pintados, esculturas, roupas e o carro vintage reformado.

Quarto da Elisa, Ratones, Dezembro de 2016

O que era dos outros ficou intacto, o que era dos filhos foi mantido porque o fogo foi controlado antes de alcançar brinquedos, moveis e roupas. Isso me atormenta até hoje: o que era dos outros não queimou. O que afinal deveria ir embora?

Era madrugada de um dezembro em Florianópolis. Dezembros já são quentes e madrugadas geladinhas são uma benção. Estava eu de pés descalços na terra, calcinha e camiseta, vendo o fogo, com um filho de um lado e a outra no colo. Batia um vento leve e tudo ficava fresquinho apesar da fogueira das minhas lembranças. Tudo se ia, mas não nós. Era como se abrisse espaço, como se ficasse leve. Não teria que limpar nem as calhas nem o sofá. Os homens contratados para o sofá chegaram no meio da manhã do dia do incêndio, o serviço estava agendado para aquele dia. Tinha bombeiros e o carro da loja que tira manchas de estofados. E tinha vizinhos, muitos. Era uma cena insólita “… não vou precisar mais do serviço: não tem mais sofá”. Até hoje lembro a expressão dos dois jovens meio sem saber o que dizer. E lembro também da minha vizinha chorando de fazer ranho e eu tendo que consolá-la e lembro o quanto eu estava elegante no meio daquele caos falando algo sábio para o filho mais velho “viu filho, o que importa é a brincadeira, não o brinquedo. O brinquedo pode ir embora, o que brincamos não”. Até hoje repito isso para ver se consigo absorver de fato no meu ordinário cotidiano. É tão mais fácil falar.

Andar superior: sala, biblioteca e cozinha, Ratones, Dezembro de 2016

Daquele evento as sensações nos deram algumas direções. Uma delas é que ninguém iria reconstruir nada, não pelos próximos tempos. Era preciso absorver tudo aquilo e metabolizar o que fosse possivel. Tinha uma chance ali, mesmo que não tivéssemos a menor ideia de que chance seria essa, nem para o que, nem para quem. A casa, por uma boa ação do marido, tinha dois seguros, um foi feito em solidariedade a gerente do banco dele na época. Saldo final não era desesperador, nem por isso menos dolorido. A consciência do sem chão é assustadora. Segurança é um mito, mas vivemos como se ela existisse. Ela e as fronteiras. Mas, não foi nenhuma bomba que caiu e nos levou a ser exilados em um país no qual não falamos a língua. Isso iria acontecer (dada as devidas proporções e por vontade própria) alguns anos mais tarde. Nem foi um desabamento que leva os barracos no morro (sem seguro, óbvio), nem um helicópteros sobrevoando nosso bairro e nos tirando algum amor. Nosso drama, se comparado com a vida dos outros, era uma tragicomédia. Deveríamos, portanto, honrar essa sorte. Todos estavam bem e como dizia para meu filho “quem fez a casa fomos nos, a gente constrói outra”. Apesar de eu saber que quem construiu foi um pedreiro e que eu não teria qualquer habilidade para fazer uma casa (ou qualquer outra coisa) e foi isso que mais doeu com aquele fogo. Estávamos todos, eu e o marido, completamente nus.

Todas as armaduras de segurança: livros, papeis e feitos, tinham queimado. Se precisássemos reconstruir algo com as mãos, a partir daqueles escombros, não teríamos a menor habilidade. Ali nos demos conta que tínhamos muito mais coisa fora do que dentro. E foi isso que o fogo arrasou imediatamente: ilusões.

Voltamos para um antigo apartamento e era como se tivessemos voltado no tempo. Como se todos os aprendizados não tivessem existido e era preciso recomeçar. Mas não do zero e sim do -3 (menos três). Respira fundo porque viver não é mole não. Saturno explica. O pior é essa sensação de falta de sentido. Nessas horas parece que vamos ter uma grande sacada, elevar a consciência, alcançar o nirvana: mas nada. A sensação era só a de que haveria muito muito trabalho pela frente. Sem nenhum anjo nos cochichando aos ouvidos palavras de salvação ou uma nova postura diante do mundo. Éramos nós, nus, mas cheios de nós mesmos. E isso era desolador. Porque muita coisa haveria de queimar ainda.

Dando um salto no tempo, três anos depois, na mesma época, estamos no meio da neve ilhados por conta de uma avalanche aos arredores. Ilhados é liberdade dramática. De fato significa apenas "sem ônibus". O povo que vive nas altas latitudes parece viver uma catástrofe ambiental anual. Que sorte a nossa (ou não) no Brasil, nossos problemas parecem decorrem, na maioria, de nós mesmos. Que carma nascer brasileira. Essa abundância não reverenciada é quase um pecado original. Vendo aquela imensidão branca me dei conta que parecia que estava fazendo o caminho de Goethe, mas ao contrário e com duas crianças e sem codinomes ou sua rede de amigos, sem falar no talento.

Ele saiu da Alemanha e foi em direção ao sul da Itália em direção às cores e do sol. Eu saia do Brasil e ia para o Tirol do Sul em direção a parte da paleta de cores que me faltava. Vai entender.

Entre o fogo e o gelo teve mar, muito mar. E encontros inesperados, amor mesmo. Me convenço a cada dia que quanto menos penso melhor. Mas como controlar a mente se não controlo nem minha língua? Como ter um pensamento vivo, ativo, lúcido? O fato é que damos força demais para a mente e ela fica solta e perigosa cheia de teses e hipóteses brilhantes que não são nem boas descrições da vida nem boas alternativas de ação. E por querer uma vontade forte e não uma mente confusa me meti onde me meti. Esse pensar demasiado e desordenado ocupa espaço e o inesperado não pode acontecer. Esses apontamento pseudo filosoficos servem apenas para dimensionar o quanto os encontros no mar foram incríveis. Por resolver experimentar a cidade, sem qualquer ideia ou segurança, e viver de aluguel e depois em um hotel, o inesperado pode acontecer. Queríamos mudar o gesto, ter mais curiosidades do que certezas, menos livros em prateleiras e mais histórias para lembrar. Ai fomos para o leste. É no leste que tudo nasce, que tudo acontece.

Foto Antonio Gonzaga, nascer do sol na Barra da Lago, 2018

E pelo leste ficamos nos aquecendo até ir para o norte, para o extremo norte. O mais norte possível. Talvez para poder voltar para o sul com a paleta completa. Essa ida para o norte era um salto para o passado. A razão? Varias teses maravilhosas, razões objetivas como cidadania e aprender italiano e alemão e possibilitar experiências vivas para os filhos. O para além da razão? Não sei ainda. Enfim, é da vida.

De diário (nada diário) vou fazer uma composição de alguns contos sobre fatos impensáveis outros muitos pensados e dores imagináveis para uma pessoa dramática que tem saturno em câncer e lua em leão. Serão, talvez, 10 contos, ainda não sei. Mas o primeiro chamarei de “O veleiro: dias antes da partida”; o segundo “Encontro com os ratos”; o terceiro “Eles usam fax”, e o quarto “Vida nua”. Depois disso veremos.

Ratones, Dezembro de 2016. Fragmento de um livro de poemas de Florbela Espanca.

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Samantha Buglione

Doctor in human sciences, philosopher who uses the scientific method of Goethe and poetry